Qual o lugar da diferença numa escola sem partido?
Fernanda Pereira de Moura
Cinthia Monteiro de Araujo
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar as concepções sobre as relações entre escola e diferenças veiculadas
pelo Movimento Escola Sem Partido. Para isso, examinamos o conteúdo de dois dos PLs que restringem a
autonomia docente em sala de aula: o PL 1411/2015 e o PL 867/2015; uma fala do coordenador do
Movimento Escola Sem Partido, Miguel Nagib, na audiência pública do PL 7.180; e três textos contidos no
Blog De olho no livro Didático de Orley José da Silva, listado na página inicial do site do Movimento
Escola Sem Partido. Entendemos que o tema das diferenças e identidades culturais é objeto privilegiado de
elaborações dentro do movimento e que isso é feito em diálogo com a produção acadêmica sobre o tema.
Esse diálogo, no entanto, acontece de maneira enviesada e em direta contradição com a produção científica
sobre o assunto. Ao questionarmos o lugar da diferença na escola a partir de uma perspectiva conceitual
que dá centralidade à dimensão cultural dos currículos, percebemos o Escola Sem Partido como um
discurso que busca ser uma política cultural com forte impacto sobre as práticas curriculares.
Palavras-chave: Currículo. Diferença cultural. Escola sem partido. Conservadorismo.
What is the role of the difference in a school that does not take sides?
Abstract: This article aims to analyze the views of the Party-Free School Movement about the relations between
school and differences. In order to do so we examined the content of two bills that restrict teacher
autonomy in the classroom, bill 1411 and bill 867/2015; one speech by the Party-Free School movement
coordinator, Miguel Nagib, in an public hearing about bill 7.180; and three texts in the Blog De Olho no
Livro Didático by Orley José da Silva, listed in the Party-Free School Movement home page. We
understand that the theme of differences and cultural identities is a privileged elaboration object inside the
movement and that such elaboration is done in dialogue with academic production about it. This dialogue,
however, happnes in a skewed way and in direct contradiction with the scientific production about the
subject. By questioning the place of difference in the school from a conceptual perspective which gives
centrality to the cultural dimension of curriculum, we perceive the Party-Free School as a discourse which
seeks to be a cultural policy with strong impact over curricular practices.
Keywords: Curriculum. Cultural difference. Escola Sem Partido. Conservatism.
Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 3, p. 617-635, dez. 2018
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MOURA, Fernanda Pereira de; ARAUJO, Cinthia Monteiro de. Qual o lugar da diferença numa escola sem partido?
1 Qual o lugar da diferença na escola?
A reflexão conceitual e o estudo empírico sobre as relações entre escola e diferença não
são exatamente uma novidade no campo educacional. Desde a segunda metade do século XX é
possível identificar o crescimento dos diálogos entre os Estudos Culturais e a Educação, e, de
certa maneira, pode-se dizer que “constituem uma ressignificação e/ou uma forma de abordagem
do campo pedagógico em que questões como cultura, identidade, discurso e representação
passam a ocupar, de forma articulada, o primeiro plano da cena pedagógica”
(COSTA;
SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 54). Nesse cenário, o tema da diferença vem sendo interrogado
a partir de entendimentos e abordagens múltiplas. Aqui, nos interessa pensar essas relações com
base na incorporação de uma perspectiva intercultural, numa abordagem que articule currículo e
cotidiano. Contudo, apostar na interculturalidade como chave de inteligibilidade para reflexão
sobre o lugar da diferença na escola exige a explicitação dos sentidos assumidos aqui para os
termos “diferença”, “cultura” e “currículo”.
Candau (2016) afirma que, apesar de determinado tipo de sensibilidade para com as
diferenças manifestar-se de forma crescente em diversos âmbitos sociais, a escola ainda encara o
tema com certa impotência. Essa postura, segundo a autora, apoia-se fortemente nas concepções
acerca dos sentidos construídos para a ideia de diferença. Ainda em diálogo com Candau (2016),
defendemos aqui que essas concepções podem partir de uma perspectiva ontológica, que significa
a diferença a partir de seu processo e lugar de produção, e/ou a partir de uma perspectiva
axiológica, que entende as diferenças a partir do valor que estas assumem nos contextos sociais.
No que diz respeito ao seu processo de produção, é possível perceber a diferença como sendo
uma característica individual e, portanto, significada a partir de referenciais da psicologia, ou
produzida socialmente por meio das relações estabelecidas nos e entre grupos sociais de
pertencimento. Quanto ao seu lugar de produção, é razoável afirmar que há, pelo menos, dois
pontos de vista possíveis. Uma visão que entende a diferença como algo que interpela e desafia a
escola. Seja um efeito da sociedade ou uma característica do indivíduo, a diferença entra na
escola e exige algum tipo de resposta por parte desta. E uma segunda visão entende a escola
tambpm como produtora de diferença. Para Louro (1997), “desde seus inícios, a instituição
escolar exerceu uma ação distintiva” (p. 57). A própria escolarização já p em si mesma uma
marca de distinção entre os que tiveram acesso e os que não tiveram acesso à escola. Além disso,
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MOURA, Fernanda Pereira de; ARAUJO, Cinthia Monteiro de. Qual o lugar da diferença numa escola sem partido?
internamente também são forjadas distinções que, por meio dos tempos e espaços escolares,
criam permissões e interdições, possibilidades e incapacidades, visibilidades e inexistências.
Há, contudo, uma outra possibilidade de construção de sentido sobre diferença que se
relaciona com sua dimensão axiológica. Russo e Araujo (2013), ao analisarem concepções
docentes, revelam que as opiniões mais recorrentes foram “aquelas que identificam diferença
com situações de desigualdade ou déficit e as que relacionam a diferença a situações de
preconceito e discriminação” (p. 573). De uma forma ou de outra, a diferença p percebida
negativamente, como um problema a ser superado pela escola, pois essa é tradicionalmente
concebida como o lugar da igualdade. “Aqui todo mundo p igual!” - máxima relativamente
comum nas escolas - acaba por contrair, no cotidiano escolar, o peso de norma e também de uma
meta. Por esse ângulo, igualdade pode tanto assumir um sentido de homogeneidade quanto de
equidade, ou seja, ao mesmo tempo em que se fortalecem práticas discursivas e estruturas
organizativas que visam a padronização, também é possível reconhecer o entendimento da escola
como espaço e estratégia de emancipação social por meio da democratização do conhecimento.
De toda maneira, independente do enfoque, a diferença tem sido vista pela escola, na maior parte
das vezes, como um desafio que quase sempre gera um sentimento de impotência: “[...] quando
chega na prática, a gente se depara com isso, se depara com as escolas sem preparo, a gente sem
preparo e as questões [da diferença] “bombando” na sala de aula” (RUSSO; ARAUJO, 2013, p.
575).
Talvez as dificuldades provocadas por esse tipo de concepção se localizem, pelo menos
em parte, na percepção da diferença como algo que exista de forma objetiva. Defendemos aqui
uma concepção relacional de diferença. À vista disso, a diferença se constrói na relação de
sujeitos, individuais ou coletivos, que atribuem significados às experiências humanas por meio de
processos dinâmicos de interação (MATO, 2009). Sendo construídas nas relações dinâmicas do
cotidiano, as diferenças podem ser reconhecidas como expressões culturais atravessadas por
relações de poder quase sempre assimétricas e hierarquizadas/hierarquizantes. Compreender a
complexidade e as potencialidades desse sentido de diferença nos exige revisitar a noção de
cultura.
Provavelmente, o termo cultura é, nas ciências humanas, um dos conceitos de mais
embaraçada definição. Nestor Garcia Canclini (2007) faz uma síntese bastante interessante,
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MOURA, Fernanda Pereira de; ARAUJO, Cinthia Monteiro de. Qual o lugar da diferença numa escola sem partido?
marcada por uma infinidade de narrativas tão distintas quanto numerosas1. Ao percorrer o que
chama de “labirintos do sentido”, reconhece pelo menos dois grandes domínios em que se pode
observar essa polissemia: aquele do uso cotidiano da palavra cultura e o dos usos científicos.
Neste último, apesar da significativa presença e fundamental interlocução entre distintas áreas do
conhecimento, destaca-se o campo da Antropologia como espaço privilegiado para a disputa de
significados. É possível afirmar que vêm da Antropologia contribuições fundamentais na
tentativa de representação do fenômeno que chamamos cultura; dentre elas, destacamos a
desconstrução do eurocentrismo, que opunha cultura à civilização, o reconhecimento de todas as
culturas como igualmente legítimas, ao propor o relativismo cultural e, ao mesmo tempo, a
observação crítica sobre a incomensurabilidade que isso gera. Garcia Canclini problematiza o
termo cultura a partir de uma definição operacional - nomeada de sociossemiótica - que afirma
que ela
“abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da
significação na vida social” (2007, p. 41). Numa direção próxima, Stuart Hall (1997) já havia
anunciado a centralidade da cultura em suas dimensões substantiva e epistemológica.
Considerando que todas as práticas sociais são práticas de significação, pois constroem,
expressam, reforçam e transformam significados para os que praticam e para os que observam,
segundo o autor, as culturas são constituídas pelos “muitos e variados sistemas de significado que
os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e
regular sua conduta uns em relação aos outros” (HALL, 1997, p. 16). Porpm, tanto para Hall
como para Garcia Canclini, esta definição não é suficiente, se considerarmos o novo lugar que o
conceito assume no debate das ciências sociais e humanas. Segundo Hall, em seus aspectos
epistemológicos, “a centralidade da cultura repousa [...] no peso explicativo que o conceito de
cultura carrega, e no seu papel constitutivo, ao invps de dependente, na análise social”
(HALL,1997, p. 32).
Para Garcia Canclini, apesar de útil para evitar dualismos e essencialismos, essa definição
não dá conta de uma característica das sociedades contemporâneas, que diz respeito àquilo que
“constitui cada cultura pela sua diferença e interação com outras” (2007, p. 48), não abarca as
relações interculturais que são constituintes e constituídas pelas mais diferentes culturas. Na
tentativa de considerar a dimensão que se refere a “diferenças, contrastes e comparações”
1 O autor lembra que, em 1952, os antropólogos Alfred Kroeber e Clyde K. Klukhohn recolheram quase trezentas
definições diferentes para o significante cultura.
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(GARCIA CANCLINI, 2007, p. 48), que Garcia Canclini opta, seguindo Arjun Appadurai, por
considerar cultura não como substantivo, mas como um adjetivo, pois favorece a uma concepção
de cultura
“menos como uma propriedade dos indivíduos e dos grupos, mais um recurso
heurístico que podemos usar para falar de diferenças” (APPADURAI, 1996 apud GARCIA
CANCLINI, 2007, p. 48).
Essa definição é especialmente importante para a definição de interculturalidade pois
concebe a cultura na dinâmica de suas relações de fronteira; entende o cultural como um processo
de significação que se realiza por meio da negociação e do conflito, caracterizando-se como um
processo político (GARCIA CANCLINI, 2007). Dessa forma, o cultural é percebido na sua
interculturalidade, ou seja, por meio de “processos de interação, confrontação e negociação entre
sistemas socioculturais diversos”
(GARCIA CANCLINI, 2007, p. 49), onde sentidos estão
permanentemente em disputa e mutação, pois as relações que se estabelecem transformam e
ressignificam o cultural. Por meio dessa concepção, é possível perceber no cultural sua
multidimensionalidade, pois ao mesmo tempo que é semântico - por envolver significados
construídos, compartilhados e transformados socialmente
-, ele é também político e
epistemológico, pois esses significados, bem como as formas de produzir conhecimentos e os
regimes de verdade que eles sustentam, são objetos e instrumentos de relações de poder, que
podem ser mais ou menos conflituosas de acordo com as questões que estão em jogo(ARAUJO,
2016).
Apoiadas nessa concepção de cultura, pesquisadoras do campo do currículo (LOPES,
2005, GABRIEL, 2010, MACEDO, 2006) afirmam que as políticas de currículo podem ser
entendidas como políticas culturais, recontextualizadas e hibridizadas nas diferentes instâncias de
sua elaboração e implementação. Assim, falar da dimensão cultural dos currículos é afirmar a
capacidade de produzir, validar e difundir significados, ou seja, é afirmar o currículo como um
espaço de significação em suas funções semântica, epistemológica e política. E, dessa forma,
reconhecê-lo como um espaço de disputas, um “território contestado”, como afirma Tomaz
Tadeu Silva (1995).
Como políticas culturais, as políticas de currículo articulam relações entre conhecimento e
poder. Desde a década de 1960, as teorias críticas do currículo têm contribuído para entender as
relações entre conhecimento e poder ao retirar o currículo do campo neutro das teorias
tradicionais e apresentá-lo como um dos elementos na produção do social. Como nos mostra
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Tomaz Tadeu Silva (2007), a Nova Sociologia do Currículo questionou o caráter arbitrário do
conhecimento e se impôs a tarefa de desnaturalizá-lo. Michael Apple denunciou o currículo como
campo de disputa hegemônica manipulado pelas camadas dominantes, enquanto Henri Giroux
defendeu o currículo como espaço de emancipação e libertação (SILVA, 2007). Essas são
contribuições fundamentais para o debate contemporâneo sobre o currículo; no entanto, a maior
parte das configurações teóricas opera a partir de um nexo externo entre conhecimento e poder,
através do qual o poder é capaz de controlar o acesso, distorcer ou encobrir o significado e
garantir a hegemonia desse ou daquele grupo social a partir do conhecimento. A presença de
relações internas entre esses dois termos - poder e conhecimento - só é discutida a partir das
proposições das chamadas teorias pós-críticas (SILVA, 1995). Apoiado em Foucault, Silva
defende que o currículo - bem como o discurso sobre ele, ou seja, a Teoria do Currículo -
envolve processos de regulação e governo da conduta humana. E mesmo que estejamos
empenhados na emancipação dos sujeitos, por meio da crítica dos processos de regulação do
currículo, este movimento já é, em si, de regulação, pois se dedica à construção de um
determinado tipo de sujeito. Dessa forma é possível afirmar que, assim como as teorizações sobre
os currículos, as políticas de currículo, entendidas como políticas culturais, consistem em
formular formas de melhor organizar experiências de conhecimento dirigidas à produção de
formas particulares de subjetividade: seja o sujeito conformista e essencializado das pedagogias
tradicionais, seja o sujeito emancipado e libertado das pedagogias progressistas (SILVA, 1995).
Operando com essas concepções, nos parece seguro afirmar que o lugar da diferença na
escola é um lugar constituinte e constituído por práticas curriculares entendidas em sua
multidimensionalidade como práticas culturais. E inspiradas por essas perspectivas, passamos
agora a olhar para as concepções veiculadas em textos publicados/recomendados pelo
Movimento Escola Sem Partido.
2 Escola Sem Partido, escola sem diferença?
Na página do movimento Escola Sem Partido são indicados dois blogs. Um deles é o
“Tomatadas” do professor Luís Lopes Diniz Filho, do departamento de Geografia da
Universidade Federal do Paraná, autor do livro “Por uma crítica da Geografia Crítica” indicado
na seção “Biblioteca Politicamente Incorreta” do site. E o outro p o blog “De Olho no Livro
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Didático”2, no qual o autor, o professor Orley José Silva3, dedica-se a tentar provar que os livros
didáticos e paradidáticos distribuídos pelo MEC são materiais desenvolvidos para doutrinação
dos jovens. Tanto Diniz Filho quanto Silva são frequentes colaboradores, reais e virtuais, do
Movimento Escola Sem Partido, tendo seus textos reproduzidos na própria página do movimento
e sendo convidados para defender a tese da doutrinação de esquerda nas escolas e a necessidade
de aprovação dos projetos de lei Escola Sem Partido. Considerando a posição que esses atores
ocupam no âmbito do movimento, vamos considerar aqui as concepções defendidas por eles em
seus textos como objeto privilegiado de nossa análise.
Em um artigo publicado na página do Movimento Escola Sem Partido, intitulado
"Livros didáticos para a revolução socialista bolivariana", Silva (2014) aponta que:
Está em curso, pois, em nosso sistema de ensino público o plantio da semente
revolucionária socialista inspirada em Gramsci para uma revolução que se pretende
pacífica, caso não haja acidente de percurso. Para o cumprimento deste objetivo,
trabalha-se na sociedade a construção hegemônica do ideal comunista por meio de
estratégias discursivas que possibilitem a subjetivação dos sujeitos.
Nesse trecho é possível reconhecer a mobilização de certa concepção de currículo que
aparenta estar em diálogo com as atuais configurações do campo, que defende o currículo como
pratica de significação e “subjetivação” por meio da “construção hegemônica” que se dá no
contexto de “estratpgias discursivas”, conforme os autores já apresentados aqui - Silva (1995),
Lopes (2005), Macedo (2006) e Gabriel (2010). No entanto, a continuidade dessa análise nos
revela que esse diálogo se dá de forma enviesada, na direção de explicitar apenas um aspecto
dessa perspectiva que atende aos interesses mais explícitos do movimento.
Segundo o Orley José Silva (2014), nessa “subjetivação dos sujeitos” (sic), o livro
didático teria papel fundamental uma vez que “traz uma visão marxista de praticamente tudo”.
Segundo o autor, seria com esse olhar “marxista” que o aluno “aprende a ver o mundo, a religião,
a história, a sociedade, o estado, a família e suas relações com o ambiente, consigo mesmo e com
o outro”. Ainda segundo Silva (2014), a suposta doutrinação marxista estaria focada nas questões
2 A ampliação da análise do Blog “De olho no livro didático” é extremamente importante para a construção de um
discurso crítico sobre os argumentos do Escola Sem Partido, pois é onde supostamente estão concentradas as
provas da doutrinação existente nos livros didáticos denunciada pelo Movimento Escola Sem Partido.
3 Orley José da Silva, é professor da Rede Municipal de Educação de Goiânia, da primeira fase do ensino
fundamental, mestre em letras e linguística (UFG), mestrando em estudos teológicos (SPRBC) e doutorando em
ciências da religião (PUC Goiás).
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relacionadas “à moral e aos costumes” enquanto as questões relativas ao poder, à autoridade (que
ele destaca que se referem também à autoridade familiar) e às instituições sociais, seriam alvo de
uma doutrinação anarquista.
O referido autor afirma que a doutrinação aconteceria de maneira explícita ou implícita
principalmente nos materiais sobre “linguagem, história, geografia e os temas transversais”.
Neles, segundo Silva, seria possível encontrar
[...] a promoção do enfraquecimento das instituições sociais e o fortalecimento da
confiança e dependência do Estado; há textos e imagens que fazem propaganda positiva
do governo; exalta figuras socialistas brasileiras e estrangeiras; enleva o modelo
socialista, relativista e sustentável de governar; relê períodos históricos e econômicos da
nação de acordo com o marxismo; sublima nomes importantes do Governo; ironiza
partido político de oposição e duvida da capacidade para decidir de adversários políticos
(SILVA, 2014, p. 1).
Em seguida, o autor vai então entrar em uma das questões mais recorrente nas postagens
em seu blog, que é a presença nos livros didáticos das religiões de matriz africana
Nas últimas edições recomendadas do livro didático, valores e símbolos cristãos já
vinham perdendo espaço e importância. Mas na edição deste triênio, referências aos
fundamentos da fé cristã que já eram escassos praticamente desaparecem, restando
apenas registros do folclore e da tradição cultural do catolicismo romano popular. Em
contrapartida, privilegia o sincretismo religioso e destaca pedagogicamente aspectos
doutrinários e práticos de religiões de matriz africana, esoterismo, bruxaria, além da
mitologia clássica. Corrobora-lhes o status de manifestação cultural e de maneiras
alternativas para o exercício da espiritualidade. É o emprego do laicismo de uma via só
porque esquece e substitui valores caros para as culturas judaica e cristã predominantes
na constituição da crença e da moral da maioria dos brasileiros (SILVA, 2014, p. 1).
Silva
(2014), finalmente, fecha o texto fazendo referência a outra temática bastante
habitual em seus textos: a imaginada “insistência governamental na desconstrução dos conceitos
de família tradicional e de heteronormatividade no material didático” (p. 1). Menciona o Kit de
combate à homofobia e explica que este “em tese, serviria para combater o preconceito contra a
pessoa homossexual na escola, mas foi entendido pelos seus opositores como indutor para a
escolha de conduta sexual” (p. 2).
Os três pontos destacados aqui a partir da leitura deste texto de Silva
(2014) são
frequentes, em maior ou menor medida, nas falas públicas e postagens dos defensores do Escola
Sem Partido: a presença, nos materiais didáticos e nas aulas dos professores, de doutrinação de
esquerda, de doutrinação em religiosidade de matriz africana e de doutrinação LGBT. De maneira
geral os três temas estariam relacionados pelo seu caráter anticristão. Seja pelo choque entre duas
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MOURA, Fernanda Pereira de; ARAUJO, Cinthia Monteiro de. Qual o lugar da diferença numa escola sem partido?
religiosidades diferentes, seja pela presumida incompatibilidade entre o materialismo histórico
marxista e o espiritualismo cristão, e a também suposta incompatibilidade entre uma afetividade e
sexualidade LGBT e a moralidade cristã. Nota-se, sem esforço, que a problemática das diferenças
culturais tem lugar destacado nos textos veiculados pelo ESP. A partir de agora, nos interessa
aqui destacar os argumentos construídos na defesa dessas ideias.
2.1 A perseguição a posicionamentos politicamente à esquerda
O PL 867/2015, o projeto de lei Escola Sem Partido da Câmara dos Deputados, cita o
Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente o artigo que determina que “nenhuma
criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de exploração”, para afirmar que os jovens
estariam sofrendo uma “exploração política”. É citado, tambpm, seu artigo 53, que garante aos
estudantes “o direito de ser respeitado por seus educadores” para afirmar que “um professor que
deseja transformar seus alunos em réplicas ideológicas de si mesmo evidentemente não os está
respeitando” (BRASIL, 2015a). Ainda segundo o PL,
[...] ao estigmatizar determinadas perspectivas políticas e ideológicas, a doutrinação cria
as condições para o bullying político e ideológico que é praticado pelos próprios
estudantes contra seus colegas. Em certos ambientes, um aluno que assuma
publicamente uma militância ou postura que não seja a da corrente dominante corre sério
risco de ser isolado, hostilizado e até agredido fisicamente pelos colegas (BRASIL,
2015a, p. 6).
Chama atenção o uso de um instrumento jurídico de central importância para a luta em
defesa dos Direitos Humanos de crianças e adolescentes - que passam a ter seu lugar de sujeito
de direitos reconhecidos a partir de então - para fortalecer argumentos que, no decorrer do
próprio PL e na trajetória dos personagens do ESP, defendem cerceamentos e questionamentos
graves dos direitos humanos.
O texto deste PL tambpm critica o suposto “uso da máquina do Estado”, que compreende
o sistema de ensino, dizendo que isto
“contraria os princípios republicanos”. Segundo o
documento,
[...] a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas configura, ademais, uma
clara violação ao próprio regime democrático, na medida em que ela instrumentaliza o
sistema público de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de
determinados competidores (BRASIL, 2015a, p. 6).
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MOURA, Fernanda Pereira de; ARAUJO, Cinthia Monteiro de. Qual o lugar da diferença numa escola sem partido?
Já o PL 1411/2015 (BRASIL, 2015b), do deputado Rogprio Marinho, que “tipifica o
crime de assédio ideológico e dá outras providências”, acrescenta à den~ncia da pressuposta
doutrinação de esquerda, a “paranoia antipetista que tomou conta do discurso da direita brasileira
sobretudo a partir de sua terceira e quarta derrotas nas eleições presidenciais (em 2010 e 2014)”
(MIGUEL, 2016, p. 609). Segundo o texto do PL 1411/2015, que fala em totalitarismo,
hegemonia e cita o nome do pensador marxista italiano Antônio Gramsci, o PT estaria usando:
Esse expediente estratégico [que] foi utilizado para a conquista e manutenção de poder
dos fascistas, nazistas, comunistas e ditadores por várias nações. Hegemonia política
significa que a voz do partido deve ser ecoada em todos corações. Por isso, a propaganda
desonesta, o marketing mentiroso, a idolatria por indivíduos, a falsificação da realidade e
a tentativa de reescrever a História, forjando o passado (BRASIL, 2015b, p. 2).
É interessante notar que o “expediente estratpgico” de “construção hegemônica” em torno
de determinados sentidos, criticado pelo texto do PL 1411/2015, é o mesmo que está sendo usado
nas argumentações construídas pelos defensores do projeto. E isso, em si mesmo, não deveria ser
considerado problemático uma vez que, conforme a matriz conceitual que defende essa
perspectiva discursiva, esse é o fluxo esperado do jogo político que define/disputa representações
culturais. Em nossa opinião, o problema se configura no uso equivocado ou oportuno desses
mesmos argumentos, que são mobilizados de forma incompleta e bastante enviesada na defesa de
um projeto político extremamente conservador, pautado por uma moral cristã intolerante com as
diferenças culturais.
2.2 A perseguição às religiões de matriz africana
A maioria das postagens do blog de “Olho no Livro Didático” se concentram na den~ncia
da suposta doutrinação dos alunos em religiões de matriz africana. Em uma das postagens
(SILVA, 2016) já no subtítulo, o autor aponta que “Alunos de escolas p~blicas e privadas,
inclusive confessionais, que estudarem com os livros didáticos/2016 do MEC para crianças de 6 a
10 anos, serão doutrinados sistematicamente no Candomblp e na Umbanda” (SILVA, 2016, p. 1).
Segundo Silva, os livros didáticos não levariam em conta os “dados estatísticos sobre a atual
configuração religiosa do continente africano em que essas matrizes tradicionais aparecem hoje
bem arrefecidas” (SILVA, 2016, p. 3). Chama então os autores de livros didáticos e professores
de “militkncia” - atribuindo sentido claramente pejorativo a esse termo - e aponta que estes não
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MOURA, Fernanda Pereira de; ARAUJO, Cinthia Monteiro de. Qual o lugar da diferença numa escola sem partido?
se conformariam “que afro-brasileiros não se identifiquem com as religiões dos seus ancestrais,
mas assimilem culturas e religiões diferentes, num suposto processo de subordinação cultural”
(SILVA, 2016, p. 3). Para ele o problema se daria “principalmente quando se trata de vertentes
cristãs que não se dão ao sincretismo religioso” (SILVA, 2016, p. 3). O autor tenta então espalhar
o pânico moral afirmando que
A estratégia de propagação da cultura religiosa afro nas escolas nos últimos anos,
começa a dar resultado. Cada vez mais é possível observar a adesão de jovens às
religiões brasileiras de matriz africana, sobretudo os de ascendência negra, fenômeno
que certamente se confirmará em censos futuros do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) (SILVA, 2016, p. 4).
Num exemplo claro do uso enviesado dos argumentos referentes à concepção de currículo
como discurso que cria subjetividades, o autor desconsidera o complexo movimento de
constituição identitária dos sujeitos, especialmente no que se refere à fé religiosa. Muitos e
diversos são os fatores que concorrem nesse processo, e dentre eles podemos elencar que
históricos processos de empoderamento tem levado a populações praticantes dessa fé a
assumirem suas identidades, como por exemplo frente as pesquisas censitárias. Por outro lado,
pesquisas acadêmicas revelam que é crescente a intolerância religiosa contra aqueles que
professam religiões de matrizes africanas, especialmente em ambiente escolar4.
Em outro texto (SILVA; PETINELLI, 2017) de seu blog, este dedicado à uma análise da
Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, o autor e a
autora mencionaram a lei 11.645/2008, que instituiu o ensino obrigatório da história e cultura
afro-brasileira e indígena no ensino fundamental e ensino médio nas escolas públicas e
particulares, para dizer que este ensino não está se dando da maneira correta. Em que pese as
inúmeras considerações que podem ser feitas em relação às dificuldades de implementação da lei,
para os autores “o ensino da cultura afro-brasileira na escola é confundido com proselitismo
religioso” (SILVA; PETINELLI, 2017, p. 9). Para eles
4 Sobre o tema das identidades/diferenças religiosas e suas relações com o espaço escolar, ver a ampla produção do
Grupo de Pesquisa Kekéré (pequeno, em Yorubá), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Coordenado pela
professora Stela Guedes Caputo, o grupo desenvolve pesquisa com crianças e jovens de terreiros dos Candomblés
brasileiros, e a partir delas e com elas, também pesquisa sobre racismo, racismo religioso, ensino religioso,
laicidade e Educação para os Direitos Humanos.
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MOURA, Fernanda Pereira de; ARAUJO, Cinthia Monteiro de. Qual o lugar da diferença numa escola sem partido?
[…] ao decidir manter um tema pretensamente cultural e histórico, mas que se traveste
de religiosidade, a BNCC privilegia e promove as religiões afro, o que é, no mínimo,
incoerente e prejudicial às outras religiões. Vale lembrar que o termo “cultura” vem da
palavra “cultuar, prestar culto” e, por si só, reflete um conjunto de vivências, crenças e
visões, dentre elas, as religiosas (SILVA; PETINELLI, 2017, p. 9).
Mais uma vez, a argumentação é construída a partir da defesa de um pressuposto legal, e
dessa vez mobiliza-se um com marcas profundas nos movimentos sociais que defendem as
liberdades identitárias e as diferenças culturais. Argumento esse que se torna vazio, já que
desconsidera os princípios das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
É importante mencionar que ao verificarmos todas as postagens do blog, desde seu início
em 2014 até hoje, pudemos observar inúmeras críticas à presença de imagens e lendas do panteão
das religiões de matriz africana e aos textos explicativos sobre os fundamentos destas religiões,
mas que não pudemos encontrar nenhuma observação aos mesmos itens (imagens, lendas e textos
explicativos) de nenhuma outra matriz religiosa. Enquanto imagens de orixás negros retirados de
livros didáticos e paradidáticos são apresentadas a todo momento no blog como prova da
doutrinação em umbanda e candomblé, não são apresentadas nenhuma das inúmeras imagens de
personagens icônicos do cristianismo, sem dúvida alguma os mais super-representados em todos
os livros didáticos de história, assim como não são apresentadas as imagens trazidas pelos livros
didáticos e paradidáticos do panteão de deuses egípcios, gregos, romanos e nórdicos.
A nós esse posicionamento parcial apenas reforça a fragilidade dos argumentos que,
quando lhe é oportuno, deixam de operar com as concepções anteriormente defendidas. A disputa
hegemônica por sentido se dá em todo campo discursivo, não apenas naquele circunscrito pelo
texto curricular. Processos de subjetivação se constroem em todas as relações sociais, entendidas
em sua multidimensionalidade. Assim como as diferenças religiosas, as identidades de gênero
tambpm são destituídas de sua complexidade para servirem de objeto alvo das “estratpgias
discursivas” do ESP.
2.3 A perseguição à chamada “ideologia de gênero”
Conforme o espantalho da “Ideologia de Gênero” se espalha na sociedade, mais espaço
ganham nas redes sociais e nos textos do Escola Sem Partido os argumentos de denúncia da
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imaginada doutrinação LGBT nas escolas. Na já mencionada postagem (SILVA; PETINELLI,
2017) do blog “De olho no livro didático” dedicada a denunciar o viés ideológico da BNCC da
Educação Infantil e do Ensino Fundamental, os autores começam o texto apresentando o histórico
da construção da BNCC, relembrando a pressão exercida pela bancada cristã5 e grupos
conservadores para a retirada de todas as menções a gênero do documento. Entretanto, defendem
a ideia de que a ameaça da “Ideologia de Gênero” ainda estaria presente no documento:
[…] de acordo com nossa análise, essas medidas podem não ser suficientes para lidar
com a estratégia da Ideologia de Gênero de promover a desconstrução da
heteronormatividade, ou seja, da normalidade de ser homem e mulher e do casamento
entre um homem e uma mulher. Isto quando as concepções de identidade e família
escorregarem por outras construções linguísticas, preferindo a descrição de imagens, a
sutileza e a legitimação do discurso científico. Essa estratégia já ocorre nos livros
didáticos e, pela leveza e legitimação da linguagem técnica-pedagógica e da descrição
das imagens, torna-se difícil de ser contestada (SILVA; PETINELLI, 2017, p. 2).
É interessante notar que no próprio trecho em destaque acima afirma-se que a “estratpgia
da Ideologia de Gênero” p de difícil contestação dadas a “legitimação” do discurso científico e da
linguagem técnica-pedagógica. Aqui os autores reconhecem que existe um processo discursivo
que constrói a legitimidade de certos enunciados e não de outros. Porém, ele não desenvolve o
argumento de como esse processo se constrói, quais são e como se estabelecem os regimes de
verdade de cada campo discursivo. Isso se nota claramente quando o autor denuncia o fato de
terem que lidar com “uma parte da Justiça, inclusive do Ministprio P~blico e dos tribunais
superiores que relativiza a moral e os costumes, mesmo os valores mais caros à sociedade”
(SILVA; PETINELLI, 2017, p. 2). O deslocamento entre esferas de construção de discurso
distintos - como o discurso jurídico e a moral religiosa - sem a consideração dos distintos
regimes de verdade que compõem cada um deles, revela a fragilidade desses argumentos.
Segundo os autores, haveria no texto “in~meras frases e períodos muito bem construídos e
maliciosamente costurados, dizendo uma coisa, mas, na verdade, querendo dizer outra” (SILVA;
PETINELLI, 2017, p. 3) que trariam três grandes ameaças: 1) um projeto de desconstrução da
família natural,
2) um projeto de desconstrução da sexualidade natural e 3) um projeto de
desconstrução da moral religiosa cristã.
5 Existem hoje no congresso duas bancadas cristãs formalmente organizadas: a bancada evangélica e a bancada
católica. Importante notar que muitos membros da bancada católica são também membros da bancada evangélica e
que ambas trabalham declarada e objetivamente juntas em prol de interesses comuns.
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Com relação à primeira ameaça, os referidos autores criticam, primeiramente, a
apresentação aos alunos da existência de diferentes tipos de famílias e casamentos. No currículo
da educação infantil, pede-se que as crianças sejam estimuladas a relatar a história de suas
famílias, e no primeiro ano se pede que os alunos sejam estimulados a reconhecer a existência de
diferentes arranjos familiares. Criticam tambpm a desconstrução de uma pressuposta “identidade
natural” dos indivíduos. Para os autores, o estímulo a que os alunos valorizem a diversidade dos
indivíduos, a que construam sua identidade pessoal e que a valorizem bem como a que
desenvolvam sua alteridade, é apontado como prova de doutrinação. Também haveria
doutrinação na busca de fazer com que os alunos repensem “dualidades e binômios (corpo versus
mente, popular versus erudito, teoria versus prática), em favor de um conjunto híbrido e dinâmico
de práticas” (SILVA; PETINELLI, 2017, p. 5). Assim como há a mesma intenção doutrinária na
disciplina Ciências, no 8º ano, quando os estudantes são estimulados a reconhecer “as m~ltiplas
dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética) e a necessidade de
respeitar, valorizar e acolher a diversidade de indivíduos, sem preconceitos baseados
nas diferenças de gênero” (SILVA; PETINELLI, 2017, p. 6) e na disciplina História, no 9º ano,
quando os alunos são levados a
“avaliar as dinkmicas populacionais e as construções de
identidades étnico-raciais e de gênero na história recente” (SILVA; PETINELLI, 2017, p. 6).
Percebe-se que qualquer questionamento ou reflexão sobre uma ordem sociocultural homogênea
e estável gera grande desconforto, o que mais uma vez reforça a perspectiva que nega as
identidades-diferenças concebidas como fruto de relações tensionadas por disputas hegemônicas.
Por fim, a “família natural” estaria ameaçada tambpm pela desconstrução dos “papeis
sociais do homem e da mulher”, que aconteceria na disciplina língua portuguesa, do 1º ao 6º ano,
quando os alunos são estimulados a constituir sua “identidade psicossocial, em sala de aula, por
meio da oralidade”, e ainda na disciplina História, no 1º ano, quando são levados a “conhecer as
histórias da família e da escola e identificar o papel desempenhado por diferentes sujeitos em
diferentes espaços” ou no 9º ano quando deveriam “identificar as transformações ocorridas no
debate sobre as questões de gênero no Brasil durante o século XX e compreender o significado
das mudanças de abordagem em relação ao tema” (SILVA; PETINELLI, 2017, p. 6). Tambpm p
apontada como problemática a orientação para a disciplina Educação Física, no 6º e 7º ano, que
afirma que os alunos devem ser capazes de
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Problematizar preconceitos e estereótipos de gênero, sociais e étnico-raciais relacionados
ao universo das lutas e demais práticas corporais e estabelecer acordos objetivando a
construção de interações referenciadas na solidariedade, na justiça, na equidade e no
respeito (SILVA; PETINELLI, 2017, p. 6).
A segunda ameaça, a da existência de um projeto de desconstrução da sexualidade
natural, teve suas expressões encontradas na disciplina de artes, quando nas orientações para a
primeira etapa do Ensino Fundamental pede-se que se discuta com os alunos “as experiências
corporais pessoais e coletivas desenvolvidas em aula de modo a problematizar questões de gênero
e corpo”
(SILVA; PETINELLI,
2017, p.
7). Da mesma forma, quando na segunda etapa do
fundamental pede-se que os alunos sejam levados a “refletir sobre as experiências corporais
pessoais e coletivas desenvolvidas em aula ou vivenciadas em outros contextos, de modo a
problematizar questões de gênero, corpo e sexualidade” (SILVA; PETINELLI, 2017, p. 7). Também é
visto como problema a orientação para, na disciplina Educação Física,
problematizar, desnaturalizar e evidenciar a multiplicidade de sentidos e significados que
os grupos sociais conferem às diferentes manifestações da cultura corporal de
movimento. Para além da vivência, a experiência efetiva das práticas corporais
oportuniza aos alunos participar, de forma autônoma, em contextos de lazer e saúde
(SILVA; PETINELLI, 2017, p. 7).
Mais uma vez percebe-se a preocupação excessiva, orientada por princípios morais
conservadores, com as questões que envolvem certa liberdade e flexibilização dos padrões
tradicionais de relacionamento com a sexualidade e com o corpo.
Já a terceira ameaça, o projeto de desconstrução da moral religiosa cristã, é apesentado em
três frentes. A primeira frente seria a desconstrução da moral religiosa judaico cristã em si, a
segunda seria a tentativa de promoção de religiões orientais e a terceira a promoção das religiões
de matrizes africanas.
Com relação à tentativa de desconstrução da moral cristã, segundo os autores, esse seria
um problema grave uma vez que “a maioria das famílias brasileiras apresenta, em menor ou
maior medida, um sistema de crenças e vivências judaico-cristão” (SILVA; PETINELLI, 2017, p. 7).
Quando os professores e livros didáticos falam sobre a necessidade de formar o cidadão crítico, o
alvo da problematização seria justamente esta religiosidade judaico-cristã. Assim, são
encontrados problemas em orientações como esta:
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Nesse contexto, um dos importantes objetivos de História no Ensino Fundamental é
estimular a autonomia de pensamento e a capacidade de reconhecer que os indivíduos
agem de acordo com a época e o lugar nos quais vivem, de forma a preservar ou
transformar seus hábitos e condutas. A percepção de que existe uma grande diversidade
de sujeitos estimula o pensamento crítico, a autonomia e a formação para a cidadania
(SILVA; PETINELLI, 2017, p. 8).
Esta forma de encarar a homofobia como um projeto de destruição da moralidade cristã
fica bem clara também em falas do coordenador do Movimento Escola Sem Partido. Em uma
entrevista para um jornal online Nagib afirmou que “Homofobia e violência contra a mulher
devem ser abordados por propaganda estatal e não na escola” (NAGIB, 2017). E completa
dizendo que o Estado “vai fazer propaganda na televisão porque ninguém é obrigado a assistir
essas propagandas. Na sala de aula é diferente porque o pai é obrigado a colocar o filho na
escola”.
Nagib usa recorrentemente o bordão “meu filho, minhas regras”, deturpação da bandeira
de luta do movimento feminista pelo direito da mulher ao próprio corpo. A apropriação de
vocábulos caros às lutas progressistas seguido por uma ressignificação conservadora ou mesmo
reacionária é recorrente. Em uma das audiências públicas da Comissão Especial para analisar o
Escola Sem partido Nagib afirmou:
Isso é muito importante, o princípio da Laicidade do Estado por que muitas vezes é
invocado para justificar o uso do sistema de ensino para promover, por exemplo, coisas
como a ideologia de gênero. Dizem: O Estado é laico então não venham tentar impedir
os professores de transmitir aos alunos esses conceitos. Mas vejam bem, as religiões não
são formadas apenas de cultos, de narrativas e ritos. Elas também possuem a sua
moralidade. O cristianismo possui a sua moralidade. Não existe cristianismo sem moral
cristã. Se o Estado puder usar a sua máquina para promover uma moralidade que seja
hostil a moralidade cristã ele estará violando justamente o princípio da laicidade do
Estado por que ele estará deixando de ser neutro em relação àquela religião que ele está
hostilizando. A moral da religião que ele está hostilizando. Não existe cristianismo sem
moral cristã. E os cristãos brasileiros, a imensa maioria deles, é obrigada a mandar os
seus filhos pra escola. Se um professor ateu, puder usar, ou militante, ativista, puder se
valer da presença obrigatória dos alunos para impor aos alunos uma moralidade
contrastante com a moralidade da família, ou com a moralidade cristã, ele estará
perseguindo a religião cristã, estará ferindo o preceito da laicidade do estado (BRASIL,
2017).
De forma complementar a esta suposta primeira frente de ataque a religiosidade cristã se
daria a segunda frente, que consiste na “promoção de ramificações da religiosidade oriental” que
seria feita ao longo da BNCC, nos tópicos relativos à ginásticas de conscientização cultural que,
segundo Silva e Petinelli, “legitima e universaliza práticas religiosas orientais e esotéricas nas
escolas p~blicas e particulares, inclusive as confessionais”
(2017, p.
9). Ainda segundo os
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autores, em uma sociedade de maioria cristã, a estratégia de penetração desta religiosidade no
currículo seria a abdicação “do pertencimento ao campo religioso” e a inserção destas “nos
discursos das filosofias e terapias alternativas, alpm do científico”. Essas grandes ameaças seriam
“a biodança, a bioenergptica, a eutonia, a antiginástica, o Mptodo Feldenkrais, a ioga, o tai chi
chuan, a ginástica chinesa, entre outros” (SILVA; PETINELLI, 2017, p. 9). E a última frente para
a destruição do cristianismo seria a fantasiosa doutrinação em umbanda e candomblé já tratada
anteriormente no texto.
3 Considerações finais
Com base nessa breve e provisória análise, podemos afirmar que a agenda conservadora
do ESP reserva atenção especial a um projeto moralizante que tem como foco um determinado
tipo de padronização baseada na negação, desqualificação e invisibilização das diferenças
culturais. Essa perspectiva se coloca, conforme apontamos, diretamente em contradição com
alguns argumentos mobilizados para a defesa das concepções do movimento. Para esse grupo, o
currículo escolar, entendido como um discurso que constrói representações sociais e
posicionamentos de sujeitos, tem servido à doutrinação ideológica marxista, de gênero e
religiosa.
Os textos analisados ressaltam - implicitamente e de forma enviesada - a dimensão
cultural do currículo nesse contexto, entretanto deixam de complexificar os argumentos ao
desarticular sua expressão semântica, das dimensões epistemológica e política, ou seja, não é
possível desarticular a produção de significados das formas de produção de conhecimentos e dos
regimes de verdade que eles sustentam, assim como das relações de poder das quais são,
simultaneamente, objetos e instrumentos. Reconhecer a dimensão cultural do currículo é,
portanto, entender as políticas de currículo “não apenas como políticas de seleção, produção,
distribuição e reprodução de conhecimento, mas como políticas culturais, que visam orientar
determinados desenvolvimentos simbólicos, obter consenso para uma dada ordem e/ou alcançar
uma transformação social almejada” (LOPES, 2005, p. 56).
Nesse âmbito, a compreensão da diferença numa perspectiva relacional se coloca como
parte integrante e indissociável dessa lógica de produção cultural, ou seja, ao construir
subjetividades, os currículos também produzem diferenças. Dessa feita, negar a diferença, vista
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em seus movimentos relacionais, a partir da defesa de uma ordem homogênea e estável, se coloca
como uma impossibilidade. Sendo assim, entendemos o Escola Sem Partido como um discurso
que se pretende uma política cultural com forte impacto sobre as práticas curriculares, mas suas
profundas marcas contraditórias revelam a inviabilidade de suas concepções pedagógicas e
didáticas. Por isso, podemos agora afirmar que uma escola sem partido, sem os fluxos culturais
de construção de sentidos, é uma escola sem diferenças, sem vida e sem futuro.
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Fernanda Pereira de Moura
Secretaria Municipal de Educação - SMERJ
Rio de Janeiro | RJ | Brasil. Contato: fernandapmoura@gmail.com
ORCID 0000-0001-7194-6870
Cinthia Monteiro de Araujo
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ | Programa de Pós-
Graduação em Ensino de História - ProfHistória
Rio de Janeiro | RJ | Brasil. Contato: cinthiaraujo@ufrj.br
ORCID 0000-0002-9104-4695
Artigo recebido em: 30 mar. 2018 e
aprovado em: 9 out. 2018.
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