DOI: http://dx.doi.org/10.22483/2177-5796.2018v20n3p761-777
Educadoras protestantes em São Paulo: uma invisibilidade histórica
Jamilly Nicácio Nicolete
Jane Soares de Almeida (in memoriam)
Resumo: A partir do século XIX, missionários protestantes chegaram ao Brasil com o objetivo de divulgar a fé e o
modo de vida de seu país de origem. Com eles vieram esposas, filhas e mulheres sem vínculo matrimonial,
que se dedicaram ao trabalho educativo como parte da Missão. A expansão do território e a intensificação
do comércio justificavam a ação missionária que se processava a mando do imperialismo, com o
argumento da missão divina, o que possibilitava a consequente expansão capitalista e vinha ao encontro
dos interesses econômicos e políticos dos Estados Unidos. As missionárias norte-americanas radicaram-se
nos vários estados brasileiros, em especial em São Paulo. Uma delas se destacou nesse cenário: Mary
Parker Dascomb, autora de cartas que foram preservadas, as quais demonstram modos de pensar, estilo de
vida e a crença inabalável na fé protestante como campo de missão social e educativo. Compreender, a
partir de diferentes escritos, o trabalho dessas missionárias e educadoras é o objetivo central deste texto.
Palavras-chave: Missionárias protestantes. Educação. História.
Protestant educators in Sao Paulo: an historical invisibility
Abstract: From the nineteenth century, Protestant missionaries arrived in Brazil, in order to spread the faith and way
of life of their country of origin. With them came wives, daughters and women without marriage bond,
who have dedicated themselves to educational work as part of the mission. The expansion of the territory
and the intensification of trade justified the missionary activity that was processed at the behest of
imperialism, with the argument of divine mission, which enabled the consequent capitalist expansion and
came to meet the economic and political interests of the US. The north american missionaries have settled
in several Brazilian states, especially in São Paulo. One of those stood out in this scenario: Mary Parker
Dascomb, author of letters that have been preserved, and demonstrate ways of thinking, lifestyle and
unshakeable belief in the Protestant faith as a social and educational mission field.
Understanding, from different writings, the work of these missionaries and educators is the central
objective of this text.
Keywords: Protestant missionaries. Education. History.
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Introdução
Os cristãos, ao longo dos séculos, impuseram sua crença ocidental aos demais povos ao
redor do mundo por meio do imperialismo teológico, num processo de aculturação que levou à
perda da religião original de conglomerados primitivos. Apesar desse objetivo inicial, as igrejas
deram significativa contribuição na defesa dos povos oprimidos, na erradicação da pobreza e da
fome, na implantação da justiça e da paz como utopias possíveis para a Humanidade, agindo
como moralizadoras e guardiãs da ética sexual e da sacralidade do casamento, incumbidas de
facilitar a passagem das almas para a vida eterna, segundo as crenças que defendiam. A estas,
eram somadas as ideologias da época, pontos de vista morais e fatos significativos da realidade
ao qual se aliavam questões de natureza subjetiva, derivadas da necessidade muito humana de
crer no divino para subjugar o medo atávico da morte, talvez a única certeza no âmbito das ações
de homens e mulheres, despojados dos avanços da ciência e conquistas de um mundo que se
secularizava lentamente.
A religião sempre foi decisiva na definição de padrões comportamentais femininos: o
Catolicismo, ao impor às mulheres a imagem da Virgem e Mãe, arquétipos sem dúvida
dicotômicos; o Protestantismo, com seus ideais ascéticos e puritanos derivados da doutrina
calvinista; o Islamismo, infringindo ao sexo feminino as mais pungentes humilhações e
cerceamento de liberdade individual; as religiões de origem afro ou hindu, contribuindo para
imposições de origem cultural e religiosa ao longo dos séculos. Nesse sentido, a ideologia
religiosa podia deformar a realidade e solidificar as ideias veiculadas pela cultura, gerando
diferentes comportamentos humanos ligados ao clima, às raças, à geografia, ao desenvolvimento
da economia e da política, alicerçando na sociedade um sistema de crenças e de comportamentos
coletivos. Nesse sistema de crenças, a fé no mundo sobrenatural ocupava um lugar determinante
nas manifestações culturais, modelando o imaginário e instaurando comportamentos ditados pela
liturgia das variadas crenças.
No caso brasileiro existe uma miscigenação religiosa que incorpora a sacralidade original
da simbologia europeia cristã, a religião de origem africana trazida pelos escravos; a religião
indígena dos naturais da terra, acrescidas posteriormente de crenças asiáticas. Esse sincretismo
religioso hoje se traduz em diferentes liturgias, seja nos grandes templos católicos e evangélicos,
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seja nos cultos domésticos e de terreiros de origem africana, estruturando-se um misticismo de
várias faces, não necessariamente fiéis a uma ou outra fé, mas permitindo a sua coexistência,
dada a histórica liberdade de crença garantida pela Constituição Brasileira desde o século XIX e a
tolerância religiosa.
Ao longo dos séculos, nas nações católicas, um modelo normativo de mulheres que se
inspirava nos arquétipos do Cristianismo espelhou a cultura vigente, instituindo formas de
comportamento onde se exaltavam virtudes femininas como castidade e abnegação, forjando uma
representação simbólica imposta pela religião e pela sociedade, na qual o perigo era
principalmente representado pela sexualidade. Essa ideologia desqualificava as mulheres do
ponto de vista profissional, político e intelectual. Uma linguagem mística para qualificar o papel
feminino foi utilizada pela ideologia cultural, que buscava na religião as metáforas e analogias
para definir a mulher-mãe com atributos de santa, anjo de bondade e pureza, qualidades que
todas deveriam possuir para serem dignas de coabitar com os homens e com eles gerar e criar
filhos.
A Igreja católica associava a figura da mulher santa, feita à imagem de Maria, à pureza de
corpo e espírito, enquanto as mulheres desviantes, transgressoras, principalmente as prostituídas,
seriam ligadas à maldade, à perfídia, ao pecado e à decadência. Se a primeira era o espírito e a
santidade, a segunda seria carnal e pecadora, levando os homens à corrupção do caráter e do
corpo. No entanto, ambas deveriam ser submissas e dependentes, pois a ordenação social assim o
exigia, e a ordem natural das coisas não deveria ser questionada por aquelas que eram as
destinatárias de um processo de controle ideológico altamente repressor. Essa imagética regrou a
sexualidade das mulheres e do casal, perpassando toda a vida social do século XIX e se estendeu
ao século XX veiculada na sociedade, na família e na educação. Nas escolas, as moças eram
instruídas quanto à importância da castidade e da pureza; nas igrejas, deveriam confessar ao
padre ou pastor quaisquer pensamentos impuros que porventura tivessem quanto ao sexo; na
família, se impedia toda e qualquer manifestação voltada para explorar ou exercer a sexualidade e
as transgressões eram severamente punidas (ALMEIDA, 1998).
No território brasileiro nos anos finais do século XIX, as mulheres, de acordo com as
premissas do Positivismo, corrente que havia tomado corpo no País e sido assimilada pelas
mentes ilustradas da época, eram vistas como seres dotados de atributos de pureza e doçura,
responsáveis pela preservação da família e da moral cristã, mães generosas, espíritos de
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sacrifício, salvadoras da pátria, o que as colocava como responsáveis por toda a beleza e bondade
que deveriam impregnar a vida social. O pensamento positivista valorizava as mulheres como
mães e esposas abnegadas, para quem o lar era o altar no qual depositavam sua esperança de
felicidade, sendo o casamento e a maternidade suas únicas aspirações. Educadoras da infância,
sustentáculos da família e da Pátria, defensoras da moral e bons costumes, nelas se depositavam
as esperanças da nova sociedade que se edificava sob os auspícios do liberalismo republicano.
A educação que se pretendia igual para os dois sexos, na realidade, diferenciava-se nos
seus objetivos, pois, de acordo com o ideário social, o trabalho intelectual não devia fatigar o
sexo feminino, nem se constituir num risco a uma constituição que se afirmava frágil e nervosa.
O fim último da educação era preparar as mulheres para o serviço doméstico e o cuidado com o
marido e os filhos, não se cogitando que viessem a desempenhar uma profissão assalariada. A
mulher educada dentro dessas aspirações masculinas seria uma companhia mais agradável para o
homem que transitava regularmente no espaço urbano, diferentemente da prática do período
colonial com seu recolhimento e distanciamento do espaço da sociabilidade.
As décadas seguintes continuaram idealizando um perfil feminino de desprendimento,
bondade, beleza e meiguice, e a mulher-mãe devia ser pura e assexuada e nela repousavam os
mais caros valores morais e patrióticos. Apesar das conquistas efetivadas ao longo das primeiras
décadas do século XX, como o acesso ainda restrito das mulheres ao ensino superior e a algumas
profissões, os ideais positivistas permaneceram, por longo tempo, impregnando a mentalidade
brasileira e esculpindo uma figura de mulher plasmada nos seus ideais.
Do ponto de vista socioantropológico, a herança portuguesa influenciou decisivamente na
construção da identidade feminina brasileira. Nos meados do século XIX, por volta de 1865, os
relatos dos viajantes pelo Brasil mostram o pouco que se cuidava da educação das mulheres,
criticando os costumes herdados dos portugueses que as confinavam no lar. De acordo com esses
costumes, que detiveram o poder de perdurar por décadas, da Colônia aos tempos republicanos,
as mulheres não precisavam de muita instrução, apenas o suficiente para agradar socialmente.
Nas primeiras décadas da República, essa situação principiou a ser paulatinamente alterada
quando as jovens começaram a ser instruídas em nível primário e secundário. No entanto, devido
à separação dos papeis sexuais que reservavam às mulheres tradicionalmente apenas a função de
esposas e mães, dificilmente as moças chegavam a cursar o ensino superior.
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No Brasil, nos finais do século XIX, o Positivismo e o Higienismo haviam indicado que
competia às mulheres a responsabilidade educativa das crianças, sendo essa proposta defendida
vigorosamente nos meios políticos, científicos, religiosos, sanitários e intelectuais. Essa
responsabilidade nunca deveria transpor as fronteiras do lar, nem ser objeto de trabalho
assalariado. O trabalho somente poderia ser lícito se significasse cuidar de alguém, doar-se com
nobreza e resignação, e servir com submissão, qualidades inerentes às mulheres, premissas com
as quais também se afinavam profissões ligadas à saúde, como enfermeira ou parteira.
(ALMEIDA, 2007).
O pressuposto da inferioridade biológica e intelectual das mulheres levou o Positivismo a
considerar natural a inserção dos homens no poder, baseando-se na diferença de ordem biológica
entre os sexos, o que justificava a subordinação e opressão feminina e seu afastamento da esfera
pública. Os sofismas positivistas respaldaram o Movimento Higienista brasileiro quando os
médicos sanitaristas, a serviço do Estado decidiram, em nome do progresso e das necessidades
profiláticas dos crescentes centros urbanos que se alicerçavam na antiga colônia, principalmente
São Paulo e Rio de Janeiro, reservar à mulher a responsabilidade pela higiene doméstica e os
cuidados com a saúde da prole.
Os anos iniciais do século XX continuaram atrelados a essas concepções, não estando
prevista a concorrência com os homens em termos profissionais e intelectuais, o que possibilitaria
a ultrapassagem dos limites de segurança social. As correntes ideológicas que orientaram o
pensamento das elites intelectuais no período republicano reforçaram essa destinação natural e
manifesta das mulheres, ressaltando seu valor na educação dos filhos e ancorando nesse destino a
necessidade de sua educação, além de lhes reservar o papel de transmissoras da moral, dos bons
costumes e guardiãs da virtude e da religiosidade. Esse período foi de poucas conquistas
femininas, mesmo com o exemplo das europeias e das norte-americanas com a ida das mulheres
ao mercado de trabalho por conta das guerras que davam visibilidade ao trabalho feminino fora
do lar, Porém, os ganhos reais de liberdade foram poucos e a tradição continuou ditando seu
comportamento e limitando seu espaço fora das fronteiras do lar, normatizando condutas,
impedindo a expansão da sexualidade e da conquista de uma profissão que não fosse socialmente
aceita.
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Ao longo das décadas, a concepção vigente sobre as aspirações das mulheres pregava que
seu destino se resumia em amar e ser amadas; pelo amor concretizavam na maternidade cuidados
domésticos sua máxima aspiração, e para esses objetivos devia ser direcionada a sua educação.
A partir de relatórios da Missão Presbiteriana, Anais da referida igreja e os Relatórios das
Mulheres na Missão, pensamos sobre o método de ensino das escolas americanas e o ideal
republicano e na organização da empresa educacional protestante como meio para se alcançar o
progresso.
A educação e o missionarismo protestante
Nos finais do século XIX, os missionários americanos vieram ao Brasil cada vez em
maior número, trazendo esposas e filhas que se incumbiam do ensino nas escolas, enquanto os
maridos divulgavam a doutrina aos nativos da terra e davam a necessária assistência espiritual
aos que já professavam ou viessem a adotar a fé protestante. A expansão do território e a
intensificação do comércio justificavam a ação missionária que se processava a mando do
imperialismo, com o argumento da missão divina, o que possibilitava a consequente expansão
capitalista e vinha ao encontro dos interesses econômicos e políticos dos Estados Unidos. Aliava-
se a isso uma intencionalidade de contar com uma alternativa para a transferência da população
negra, que se multiplicava pelos estados após a Guerra de Secessão e evitar a miscigenação racial
no próprio país de origem.
Os missionários, após suas andanças pelo sertão, quando voltavam a São Paulo escreviam
seus relatórios à Junta nos Estados Unidos, contando do modo afável dos brasileiros,
principalmente paulistas e cariocas, seus hábitos livres, as uniões não legalizadas, a tolerância e o
respeito pela religião alheia. Informavam que o analfabetismo reinante entre homens, mulheres e
crianças era um obstáculo à conversão baseada na leitura da Bíblia, dificultando o progresso e a
ascensão social, ideia firmemente plantada pela corrente liberal capitalista. Imbuídos dessa
crença, os missionários envidavam esforços para a criação de colégios onde pudessem se
encarregar da educação dos brasileiros e convertê-los à verdadeira fé.
Nos tempos imperiais, os protestantes conseguiram alicerçar-se no sistema educacional,
principalmente entre a população de baixa renda e imigrantes europeus. Esse quadro principiou a
mudar com o republicanismo, que nos finais dos oitocentos exerceu sua influência nas mentes
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ilustradas do país quando as correntes liberais e progressistas fariam com que as elites e setores
da classe média voltassem seus olhos para o ensino protestante, tão distanciado em objetivos e
métodos da educação católica. O ideário de uma educação que atingisse a toda a população e que
o ensino de crianças estivesse sob responsabilidade feminina fez com que as missionárias
protestantes fossem as principais incumbidas do trabalho nas escolas. A concepção de trabalho
como vocação e de glorificação da palavra de Deus, de acordo com a ascese protestante, não
poderia alijar da sua realização o sexo feminino, por mais difícil que este se apresentasse. Para os
protestantes, impedir as mulheres de trabalhar, ao contrário do espírito religioso católico e ainda
atrelado ao colonialismo lusitano que via o trabalho feminino como desairoso, seria também
impedir a exposição da vontade divina.
Apesar da orientação norte-americana de atribuir às mulheres a incumbência de educar a
infância, os membros da Junta de New York manifestavam dúvida e preocupação quanto à
possibilidade de as missionárias ensinarem meninas nesses lugares ermos do interior da
província, por conta das privações e riscos a que eram submetidos os evangelizadores. Uma
preocupação que também se referia ao seu próprio país, pelo perigo das grandes extensões
territoriais e a vida em estado quase selvagem nas fronteiras mais distantes. Porém, entendiam a
necessidade de seu trabalho na importante tarefa educativa, quando todos os recursos humanos
deveriam ser aproveitados, principalmente quando se tratava de um país católico, subjugado por
um clero inepto e cheio de vícios, vivendo em desacordo com a moral cristã e sem nenhum
código de ética, como a adotada no protestantismo.
Missionárias educadoras
As preocupações com sua segurança e conforto não impediam que as missionárias
correspondessem às expectativas e eram enviadas pela Junta para criar escolas e organizar seu
projeto pedagógico, de acordo com o método de ensino norte-americano. Muitas foram as
dificuldades, principalmente os cortes financeiros que afetavam as escolas e as professoras
chegavam mesmo a cobrir gastos com seu próprio salário, conforme escreveu Ella Kuhl para
Mary Dascomb em janeiro de 1899 (MICROFILME BRAZIL-MISSION, 1833-1911, n. 149).
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Em menos de cinquenta anos, as cidades mais importantes do país tinham uma escola
americana protestante, com classes onde predominavam as professoras, abertas aos filhos dos
convertidos e aos setores interessados em proporcionar aos seus filhos uma educação
diferenciada da tradição católica e da ineficiência da escola pública de então, constituindo uma
alternativa aos colégios internos. A presença das mulheres na educação escolar pública paulista
se fazia cada vez mais frequente, mas ainda era vista com resistência por parte de segmentos
conservadores mais tradicionais. As professoras primárias públicas enfrentavam no interior da
província preconceitos que se apoiavam na imagética de o trabalho ser nocivo para as mulheres e
atentar negativamente para sua boa formação moral. Isso acontecia a espaços, apesar do ideário
positivista alocar ao sexo feminino a tarefa de educar a infância, por conta da resistência de
parcelas mais conservadoras quanto aos papéis sexuais reservados aos dois sexos.
A presença das educadoras protestantes pode ter contribuído para mudar parcialmente
essa mentalidade, dada a admiração que intelectuais e educadores paulistas nutriam pelo modo de
vida americano. As mulheres e as filhas dos ministros chegavam acompanhando maridos e pais e
ajudavam a levar a bom termo seu trabalho, incumbindo-se de lecionar nas escolas levantadas
junto às igrejas, alfabetizar as crianças e introduzi-las na leitura da Bíblia, não permanecendo
ociosas e inclusive assumindo encargos de direção e organização das escolas1. Essas mulheres,
tanto as americanas, como as brasileiras convertidas, além da educação dos meninos e meninas,
empenharam-se na formação de novos quadros profissionais que pudessem dar continuidade ao
seu trabalho em esfera local. Para isso investiram na criação de escolas que pudessem também
formar professores e professoras para o ensino primário que em fins do século XIX passava por
tentativas de implantação e reforma em São Paulo.
Escolas foram criadas em vários locais, tanto em São Paulo, como nas outras províncias,
sustentadas em parte pelos pais dos alunos e por fundos da Missão. Eram tempos difíceis, de
dinheiro escasso para os missionários, os gastos eram consideráveis e as escolas consumiam
muito numerário, não sendo poucas as que fechavam por dificuldades financeiras. As escolas
americanas se notabilizavam por enfatizar um ensino no qual a tônica era a solidariedade e o
1 Nomes como Mary P. Dascomb, Mary Ann Chamberlain, Elmira Kuhl, Nanie Henderson, Mary Videau Kirk,
Charlotte Kemper, Kate Bias, Mariquinhas Prestidge, Phoebe R. Thomas, Ellie Miller, Rosa Vieira Ferreira,
Adelaide Molina, Miss M.G. Goodale, Anna Nicodemi, Maria E. Ellis, Carrie Porter, Virginia E. Porter, Marcia
Browne, entre outras, foram importantes na divulgação de uma concepção de ensino que pregava a igualdade e a
democracia, a ênfase em valores morais e a conversão religiosa.
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individualismo ético, onde imperavam valores como honra, virtude, respeito mútuo, temperança e
liberdade, derivados da religião e do acatamento de seus preceitos. Buscava-se motivar e
incentivar alunos e alunas a seguirem um modelo de educação que propiciasse mudanças
comportamentais e instituísse valores diferenciados na sociedade brasileira, que não aqueles
calcados no modelo clerical católico.
Com a criação e funcionamento das escolas americanas, a prática protestante erigia novos
valores sociais, como os pais investindo nas escolas, colaborando para pagar professores e
ajudando os filhos sempre que possível, ao mesmo tempo em que se valorizava o trabalho das
mulheres como educadoras de crianças e implantando a coeducação dos sexos, princípios
adotados nos Estados Unidos do Norte desde 1850, aproximadamente.
Quando em 1870, em São Paulo, Mary Chamberlain organizou a classe para meninas
protestantes, a grande procura fez com que o reverendo Chamberlain considerasse que o Sistema
Escolar do Império era insuficiente e que necessitava haver um lugar para ensinar a todos aqueles
que eram perseguidos nas escolas públicas fossem ou não protestantes. As mesmas reflexões
fizeram Georg Nash Morton e Edward Lane, ministros presbiterianos que haviam chegado em
1868 com o objetivo de determinar qual o melhor lugar para sediar a Missão no Brasil. O
reverendo Lane era do Nashville Committee das Igrejas do Sul dos Estados Unidos e de origem
inglesa, tendo estabelecido o centro de suas atividades missionárias na região de Campinas.
A participação feminina na educação protestante neste período ganhou força, mas uma
carta escrita pelo Rev. George Chamberlain, em março de 1868, endereçada ao Rev. Irving,
indica que tal inclinação institucional, deveu-se principalmente a uma questão financeira: “Nós
deveríamos ter três escolas imediatamente. Meu julgamento é que 600$ cobririam todas as
despesas de uma senhora solteira no Rio, pouco menos em São Paulo, menos ainda em Brotas”
(CHAMBERLAIN, 1866-1875, p. 37).
Sustentar uma mulher, solteira, era mais barato que se responsabilizar pela manutenção de
uma família. Nomear mulheres para o trabalho de administrar e lecionar nas escolas americanas,
como aconteceu com Dascomb, Kuhl, Kemper e outras norte-americanas, era uma economia para
a Missão e a Igreja, além de garantir, inevitavelmente, mais tempo de dedicação dessas às
Escolas Americanas.
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A presença de Miss Mary Dascomb
A primeira Escola Americana no Brasil, fundada por Mary Chamberlain, começou a
funcionar sob a direção de Mary Dascomb. O Annual Report de 1889 traz algumas informações
sobre a missão no Brasil e também destaca o nome de Mary Dascomb como uma liderança neste
país:
São Paulo: 300 milhas a oeste-sudoeste do Rio de Janeiro; principal cidade da província
de mesmo nome; população, 27,000 (ver população); ocupado como uma estação de
missão em 1863; trabalhadores missionários - Rev. Geo W. Chamberlain e mulher; H.
M. Lane, Medical Doctor; Senhorita Ella Kuhl, Miss Mary P. Dascomb, senhorita PA
Thomas, 9 professores, um leitor da Bíblia, e um vendedor de bíblias. Rev. D. McLaren,
uma parte do ano. Corytiba: cerca de 500 milhas a sudoeste do Rio de Janeiro; principal
cidade da província do Paraná; trabalhadores missionários - GA Landes e esposa e dois
vendedores de bíblia. Neste país: James Theodore Houston, George W. Chamberlain, G.
A. Landes, e suas esposas e Miss Mary P. Dascomb (ANNUAL REPORT..., 1889, p.
39).
Mary Parker Dascomb era filha adotiva de dois professores do Oberlin College, nascida
em Providence, Rhode Island, em 1842. Havia vindo uma primeira vez ao Rio de Janeiro como
preceptora dos filhos do cônsul norte-americano James Monroe. Em 13 de março de 1868,
George Chamberlain escreveu ao Rev. Dr. Irving que tinha uma irmã em Fair Hill que aguardava
para ser enviada para trabalhar nas escolas brasileiras. No entanto, em 25 de agosto de 1868 o
Rev. Blackford relatou que a tentativa de receber a senhorita Chamberlain não foi bem-sucedida,
mas enalteceu a capacidade colaborativa da senhorita Dascomb:
Ficamos desapontados em não ver o irmão Chamberlain, e ainda mais ao saber que sua
irmã não virá. Estávamos planejando e esperando dar organização definitiva e
permanente para uma escola logo após a chegada dela. Já temos sete ou oito garotos a
quem nossos estudantes dão instrução como podem, e há algumas meninas cujos pais
estão ansiosos para mandar tão logo quanto possível. Se a srta. Chamberlain não pode
vir, acredito que a srta. Dascomb seja enviada. Suas qualificações permitem sem dúvida.
Sinto que já adiamos muito a entrada nesse trabalho importantíssimo.
[...]. Nós
deveríamos ter três escolas imediatamente (CHAMBERLAIN, 1866-1875, p. 17; 21).
Mary Parker Dascomb foi a primeira diretora do Mackenzie, então Escola Americana de
São Paulo, em 1871. Tal informação, relevante para apontar todo o seu caminho como gestora da
educação institucional presbiteriana, pode ser encontrada nos Annaes da 1ª Egreja Presbyteriana
de São Paulo (1863-1903), escrito por Vicente Themudo Lessa (1938, p. 86), na obra de Ferreira
(1992, p. 141-142) e ainda na nona página do relatório da Igreja de São Paulo apresentado pelo
Pastor George Chamberlain ao Presbyterio do Rio de Janeiro na sessão de
1870
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(CHAMBERLAIN, 1870). Mary Dascomb iniciou seu trabalho no Rio de Janeiro, na escola para
meninos e meninas anexa à igreja. Em seguida foi para São Paulo, Brotas, Rio Claro, cidades do
interior paulista, e viveu a maior parte de sua vida em Curitiba, Paraná. Além de educadora, tinha
outras habilidades: era organista da igreja e ainda, regente do coral da Igreja Presbiteriana de São
Paulo, formado em 1887.
Em 1876, a Escola Americana de São Paulo passou a funcionar em um novo prédio à Rua
de São João, esquina da Rua Ipiranga, onde, segundo Lessa (1938, p. 452), “funcionou por mais
de quarenta anos. O ensino de gramática ficava sob a responsabilidade do Rev. Eduardo Pereira,
enquanto o estudo da aritmética teve sua origem com Miss Dascomb”. Em 1872 Mary foi
enviada para Brotas, também para dirigir uma escola. Em Rio Claro, a escola começou com nove
alunos, em fevereiro de 1873, cinco meses depois, em julho, já eram setenta e seis o número de
matrículas. A Escola contava com apoio financeiro da Missão.
No Sexto Relatório Anual The Woman’s Foreign Missionary Society, de 1876, da
Sociedade da Igreja Presbiteriana Missionária das Relações Exteriores da Mulher, há informações
sobre o ano de 1875:
Senhorita Dascomb e Miss Kuhl continuam tomando conta da escola de Rio Claro, que
tem sido grande e florescente. Elas se mudaram para a nova casa construída pelo Sr. Da
Gama para ser a residência, escola e capela, e para o qual arrecadamos parte dos fundos
necessários para pagar sua dívida pessoal, e o Conselho paga a outra parte. A situação
desta casa é boa, e é muito mais confortável e adequada do que a anteriormente ocupada
(p. 6).
O Relatório aponta que o interesse da Sociedade em Miss Dascomb aumentava com o
passar dos meses, à medida que suas cartas informavam de suas claras necessidades e trabalho:
“O trabalho de Miss Dascomb, na escola diária e dominical, tem sido incessante. O sucesso da
escola e da conversão de alguns dos seus alunos durante o ano mostram que a boa semente não
foi semeada em vão” (THE WOMAN’S... 1876, p. 8).
Miss Dascomb trabalhou em Rio Claro até 1876, quando, segundo seu Memorial Minute
(1917), foi chamada aos Estados Unidos, pois seus pais estavam doentes, e permaneceu lá até
1880, trabalhando no ensino do Wellesley College por três anos e meio. Os pais, James e
Marianne, morreram no espaço de um ano. Durante o período que permaneceu em sua terra natal,
Mary recebeu o grau honorário de Mestre em Artes em 1878. Depois da morte dos pais, retomou
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ininterruptamente seu trabalho no Brasil. Atuou em São Paulo, Botucatu e, em 1892, foi com
Miss Kuhl removida para Curitiba.
Para Hahner (2011), na década de 1870 surgiu uma percepção da necessidade de reformas
essenciais na organização da economia e do sistema político. Para os brasileiros que pregavam a
modernização material do Brasil, a educação seria um elemento essencial para o desenvolvimento
do país, e apoiaram melhoramentos na educação feminina. No entanto, a ênfase ficou na
maternidade, que ligavam ao progresso e ao patriotismo. A coeducação ganhou força, defendida
com vários argumentos, incluindo o econômico. Segundo Hahner (2011), enquanto as taxas
nacionais de alfabetização masculina e feminina não diminuíam, a alfabetização nas cidades em
crescimento não só aumentava, como a disparidade entre as taxas masculina e feminina diminuía
progressivamente:
No Rio de Janeiro, por exemplo, a taxa de alfabetização feminina comparada à
masculina subiu de 29% feminina versus 41% masculina em 1872 a 44% feminina
versus
58% masculina em 1890. O crescimento do número absoluto de mulheres
alfabetizadas nos centros urbanos mais desenvolvidos forneceu um grande potencial para
a eleição de professoras que podiam ser contratadas por salários inferiores (HAHNER,
2011, p. 2).
Lessa afirma que havia em Botucatu um centro missionário, onde o Rev. Landes
trabalhou de 1881 a 1885. Nesse período, começou a funcionar, sob a direção de Miss Dascomb,
uma “boa escola” (LESSA, 1938, p. 349), termo que remete ao protagonismo de Dascomb no
campo educacional da missão presbiteriana norte-americana. Em 1885, Mary Dascomb e Miss
Kuhl imploravam por ajuda na escola de São Paulo, para que pudessem se preparar para entrar na
grande província de Minas, onde viam possibilidades para o trabalho escolar. Três anos depois,
no Décimo oitavo relatório anual da sociedade missionária estrangeira da Mulher da Igreja
Presbiteriana - 1888, a Escola Americana de São Paulo continuava prosperando, sob os cuidados
de Dascomb e Kuhl, que relata: "Agora é uma das mais antigas e mais bem estabelecidas escolas
naquela cidade. Das trinta meninas que foram matriculadas durante o ano, vinte e uma foram
mantidas ou ajudadas por fundos da missão" (THE WOMAN’S... 1885, p. 19).
Muitas meninas educadas na escola eram posteriormente encaminhadas para o trabalho.
Em 1888, seis delas já trabalhavam, ensinando nas escolas em Caldas, Botucatu, Brotas,
Sorocaba, e Rio de Janeiro, e no externato em São Paulo. Todas as alunas aprendiam trabalho
doméstico, o que era bem aceito pelos agricultores, que sabiam que o processo de abolição da
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NICOLETE, Jamilly Nicácio; ALMEIDA, Jane Soares de. Educadoras protestantes em São Paulo: uma invisibilidade histórica.
escravatura estava em curso e, consequentemente, apreciavam que suas filhas aprendessem a
trabalhar.Corte e Costura foi adicionada à lista de afazeres, e as meninas ficaram entusiasmadas
com ele” (THE WOMAN’S... 1888, p. 324). Segundo o Relatório, o externato também cresceu e
suas instalações já não eram suficiente, sendo necessário utilizar os cômodos laterais da igreja e
muitos alunos tiveram a admissão recusada por falta de espaço. Senhorita Kuhl diz, "nosso
trabalho está ficando cada vez mais interessante. Alguns dos nossos primeiros alunos estão
casados, e de suas casas vêm cartas cheias de amor e ternura, que alegram nossos corações".
Ao final, do Relatório: “Ouvimos que Miss Dascomb, está bem e tão alegre como sempre. Ela
precisa de um período de férias, mas ela mesma não percebe" (THE WOMAN’S... 1888, p. 176).
Em 18 de setembro de 1892, ano de inauguração do Colégio Americano de Curitiba, o
jornal A Republica traz, em sua Secção Livre, (p. 3), um texto intitulado O Collegio Americano e
a Bacharella Dascomb, onde exalta as competências da educadora:
Tendo ultimamente vesitado o Collegio Americano e apreciado o importante e utilíssimo
methodo seguido pelos seus dignos professores, venho publicamente manifestar a
profundada admiração que rendo á tão geniaes educadores. Esta salutar instituição,
apresentando todas as condições proprias d’um estabelecimento de sua natureza, q
dirigida pelas ilustradas e distinctas Sras: Bacharela Miss Dascomb e Miss Elmira Kuhl.
O seu curso secundario, tendo como professora a erudita Miss Dascomb apresenta os
mais profícuos resultados. A Miss Dascomb, este genial talento feminino, dispondo de
muitos recursos intellectuaes e possuindo um excelente methodo pedagógico, oferece
aos seus discípulos as maiores vantagens no estudo (UMA ADMIRADORA, 1892, p. 3).
Em 1870, Lane e Morton fundaram em Campinas a Igreja Presbiteriana e a escola que
funcionou por um ano. Em 1873 a escola organizou-se melhor e teve funcionamento contínuo,
onde lecionou Miss Nanie Henderson e, posteriormente veio ajudá-la Miss Mary Videau e John
W. Dabney, para lecionar no College. Estava iniciando-se o funcionamento do Colégio
Internacional de Campinas que em 1875 recebeu a visita do Imperador D. Pedro II. Em 1879,
devido a dificuldades financeiras que abalaram o colégio, Morton foi embora para São Paulo
levando metade do corpo docente com o objetivo de abrir uma escola.
Em outubro de 1871, Chamberlain organizou uma reunião em São Paulo com o objetivo
de conseguir apoio para a fundação do College. Os missionários Morton e Lane também
estiveram presentes e em dezembro realizaram reunião similar para fundar o colégio de
Campinas. Tanto os missionários radicados em Campinas, como o reverendo Chamberlain
propunham fundar um tipo de colégio que englobasse o curso primário, o secundário e o curso
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superior científico. Na escola de São Paulo, a assembleia decidiu que usaria os métodos e a
organização escolar, praticados nos Estados Unidos, e a língua utilizada seria a portuguesa
funcionaria em regime coeducativo e a língua utilizada seria o português. Dar-se-ia ênfase ao
treinamento manual, à ginástica e aos esportes em geral, e os turnos funcionariam em regime de
internato. De acordo com os princípios éticos e democráticos norte-americanos, considerava-se a
educação um direito do indivíduo, porém existia também a obrigação a garantir indistintamente
de todos, independentemente da raça, da cor, do sexo ou da classe social. A propaganda religiosa
seria excluída e a função do ensino religioso seria apenas debater valores éticos e morais,
descartando-se o proselitismo religioso.
Na República, o magistério exercido por mulheres, a coeducação dos sexos, a implantação
de uma prática educativa inovadora e uma visão de mundo diferenciada ganharam a simpatia dos
intelectuais reformadores. As escolas protestantes, durante um determinado período, firmaram-se
como centros de excelência irradiadores de modernas metodologias, passando a ser aceitos
também pela classe média ascendente urbana e por uma pequena burguesia que se considerava
progressista. Essas escolas contaram com mulheres colaborando eficazmente para sua
implantação e funcionamento. Ao lado dos homens dedicaram suas vidas e seus esforços para
erigir escolas e igrejas, disseminando no país escolhido, a sua religião, o que também significava,
o seu estilo de vida.
Ao findar o século XIX, a Província de São Paulo contava vários estabelecimentos de
ensino denominados Escolas Americanas. Essas escolas passaram a fazer parte da oferta de
ensino regular num sistema escolar que tentava firmar-se na educação paulista e chegaram
mesmo a destacar-se no cenário nacional, sendo reconhecidas pelas autoridades brasileiras,
colaborando na construção da cultura, da nacionalidade e da identidade do país. Ao veicularem o
trabalho feminino como fator de elevação moral e espiritual do magistério, e instituírem classes
mistas onde se praticava ensino igual para ambos os sexos, descortinaram uma perspectiva
educacional diferente da pregada pelos colégios católicos e até mesmo pelo ensino público. Ao
introduzirem as premissas liberais vigentes nos Estados Unidos, instituíram um novo tipo de
educação escolar que, se por um lado agradava alguns setores progressistas republicanos, por
outro era visto com receio pelos setores conservadores da sociedade civil e pela Igreja Católica,
empenhada em recuperar espaços perdidos no campo educacional.
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No caso protestante, o mais forte elemento definidor da identidade foi o inimigo comum, a
Igreja católica, e a oposição que esta dirigiu à religião protestante. Quando a oposição se
articulava em torno de embates ideológicos de qualquer natureza, católicos e protestantes se
deslocavam para polos opostos, cada qual defendendo uma posição que, essencialmente, ligava-
se a essa mesma identidade e definia modos de vida, crenças e procedimentos incompatíveis entre
si. O caráter protestante se revelava em afirmativas que as mulheres versadas na doutrina
religiosa seriam as mais indicadas para ensinar tanto na família como na escola. Desse ponto de
vista, no trabalho educativo, visto como ato missionário, se embutia um senso de dever onde o
desprendimento e a austeridade casavam perfeitamente com a proposta republicana brasileira de
erigir uma grande nação, com o ideal manifesto de que ser uma das maiores do mundo. Para as
mulheres, o magistério era a sacralidade vocacionada, era o cumprimento dos desígnios de Deus,
além de representar um ato de heroísmo e de patriotismo.
Quando os missionários protestantes se dirigiram ao Brasil na sua missão evangelizadora,
trouxeram esposas e filhas que iriam desempenhar a tarefa de educar, juntamente com a pregação
religiosa, enquanto eles se incumbiam dos atos públicos de fundar igrejas e escolas, construir
edifícios e participar da vida política do país. As mulheres que acompanhavam os missionários
foram para as salas de aula, organizaram o ensino, administraram os colégios e as escolas
paroquiais, encarregando-se também das obras caritativas e de salvação, desempenhando o seu
próprio destino manifesto de serem as responsáveis pela educação das futuras gerações,
iluminando assim sua existência com os ditames da verdadeira fé. Nesse mister, que também era
vocação e ofício divino, as professoras missionárias norte-americanas, além de referendarem os
atributos femininos para o desempenho profissional no magistério, também defenderam a
coeducação, prática advinda da necessidade de não segregar os alunos por conta do sexo e
fornecer a meninos e meninas os mesmos conhecimentos. Tudo isso na esteira de um ideal
democrático de igualdade que estava se alicerçando em seu país de origem, tendo na base um
pensamento que misturava à profissão a imagem da sacralidade e ao trabalho das mulheres na
educação a ideologia de missão, vocação e destino.
Considerações finais
O método de ensino desenvolvido nos colégios protestantes calcado na ideologia liberal,
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que colocava como meta individual o êxito, e como a soma destes o progresso da sociedade,
fornecia o respaldo ideológico para os republicanos que buscavam na educação os pressupostos
necessários para a implantação e a preservação de suas perspectivas e ideias. Era necessária uma
educação que pudesse, ao mesmo tempo, revelar as fragilidades do sistema imperial e manter
coesa toda sociedade brasileira em torno dos ideais republicanos de liberdade. As iniciativas
protestantes quanto a este objetivo foram bastante significativas e se ampliaram nas décadas
iniciais do regime republicano. A influência de seus colégios incidiu mais diretamente na
organização escolar e nos processos didáticos do que em termos doutrinários, propriamente ditos.
É inegável a contribuição dos colégios protestantes à educação pública paulista, contra a
tradição católica de separação rigorosa de sexos; na dignidade da educação do sexo feminino; no
princípio de liberdade de religião nas escolas
- embora na prática houvesse um pretenso
direcionamento; na renovação dos métodos pedagógicos, em detrimento da pedagogia pouco
estimulante e monótona das escolas públicas; na introdução da coeducação; na inovação
curricular; com ênfase ao aspecto científico, contra um currículo essencialmente clássico na qual
as ciências físicas e naturais eram apresentadas quase sem o uso de laboratórios e
experimentação; contra a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas; ou no espírito
de compreensão e mesmo de ternura que permeavam suas relações entre professor-aluno; contra
o autoritarismo de herança jesuítica.
A empresa educacional protestante deixou sua contribuição às mulheres, ao possibilitar
sua instrução e profissionalização no magistério, adentrando os espaços públicos, uma via de
acesso ao poder, a conquista de um meio de reconhecimento profissional e independência
financeira.
Referências
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ALMEIDA, Jane S. de. Ler as letras: por que educar meninas e mulheres? Campinas: Autores
Associados, 2007.
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presbiterial de 1866-1875. Relatório manuscrito.
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FERREIRA, Julio. História da Igreja Presbiteriana do Brasil. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana,
1992. v. 1
HAHNER, June. Escolas mistas, escolas normais: a coeducação e a feminização do magistério no século
XIX. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 2, pp. 467-474, maio/ago. 2011.
LESSA, Vicente. Anaes da 1ª Igreja Presbiteriana de São Paulo (1863-1903). São Paulo, 1938.
Disponível em: <https://archive.org/stream/annaesda1aegreja00less#page/n7/mode/2up>. Acesso em: 05
maio 2016.
MICROFILME Brazil Mission, 1833-1911, rolo n. 149. Estados Unidos, Washington: Rand Corporation.
THE WOMAN’S Foreign Missionary Society of the Presbyterian Church. New York, 1876. v. 6.
THE WOMAN’S Foreign Missionary Society of the Presbyterian Church. New York, 1885. v. 15.
THE WOMAN’S Foreign Missionary Society of the Presbyterian Church. New York, 1888. v. 18.
UMA ADMIRADORA. O Collegio Americano e a Bacharella Dascomb. A República, Curitiba, 18 set.
1892. Secção Livre.
Jamilly Nicácio Nicolete
Centro Universitário Toledo | Departamento de Educação
Araçatuba | SP | Brasil. Contato: jamillynicacio@hotmail.com
ORCID 0000-0002-0028-2568
Jane Soares de Almeida
Universidade de Sorocaba. Sorocaba | SP | Brasil
Artigo recebido em: 17 abr. 2018 e
aprovado em: 3 ago. 2018.
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